segunda-feira, 10 de agosto de 2015

EU TAMBÉM SOU UM REI DO LIXO

A luta com dignidade sempre presente
                                           Se meus amigos me encontrarem em um dos pontos de lixo da cidade, não precisam ficar admirados ou emitindo qualquer juízo. Imploro que não pensem que estou biró(doido). Não e não! Não é em busca do ganha pão, a exemplo de bravos catadores que buscam sua sobrevivência de uma forma honesta e sem ter ainda recebido do poder público e ,também de nós, à devida atenção e respeito. Os meus pais amados, Amadeu e Itamar, me deixaram o suficiente para as três refeiçoes e bancar outras coisas. Bem, vou contar esta história para vocês. Tudo começou há uns dez anos atrás. Estava eu numa dessas caminhadas, de toda manhã, quando, uma linda senhora(nunca a vi, não a conheço) desceu do seu carrão(massa!) e falou sem querer falar: "O senhor quer o Jorge prá você? Sai prá lá, violão!!! Reagi. Essa chique madame não me conhece e já vem com esse papo. Não é o que o senhor está pensando! É que fiz uma reforma no meu apartamento e priorizei a concepção espacial(diabéisso?) e esse tal de Jorge Amado ocupa muito espaço.  Mas senhora, Jorge Amado? Isso é lixo cultural dispensável que vocês pobres(ah condenada!) têm mania de gostar. Aí pensei com meus botões: quantas coisas raras são descartadas por essa gente, meu pai celestial! Aí fiz amizades com muitos catadores e acertei com eles que pagaria o que eles encontrassem  deste tipo de material. Minha casa continua do mesmo jeito, mas dar gosto receber visitas, em especial de jovens, em buscas de jóias, verdadeiras pérolas encontradas no lixo. O meu colega de tempos de Colégio do Padre, o Paulinho da Dida, quase pira quando lhe mostrei o disco "Acabou Chorare" de 1972 e me falou que era uma referência em pluralidade musical. Me ofereceu uma boa grana e quase eu caía nessa devido o estratosférico valor da minha atual conta de luz. Mas, o velho e teimoso coração falou bem mais alto. Já estAVA pensando nos caras trepados no poste cortando a minha luz, mas não vendi. Nessas horas, recorro a Santa Edvirgens e até hoje, nunca me faltou. Certa vez, um professor universitário queria levar, de qualquer jeito, o álbum "clube da Esquina", de 1972, gravado por Milton e Lô Borges. Não cedi porque adoro a capa deste disco, aquelas duas crianças sentadas numa estradinha me emocionam muito. "Chega de Saudade" encontrei num camburão de lixo, perto da rodoviária, em Fortaleza.  Confesso não entender muito  a música de João Gilberto mas sei do valor imenso deste vinil. Digo a vocês que veio um casal do Crato, no ano passado, comprar, por qualquer preço, este disco. Falaram que faz parte da história deles. Para acalmá-los copiei um "cd" com as canções originais e eles saíram felizes e ganhei de presente um jantar num desses modernos hotéis da linda Quixadá. Incrível! Apareceu um professor(acreditem, professor!) perto do hospital do exército, na minha amada capital, falando que odiava Machado de Assis e lançou no muro várias obras do bruxo do Cosme(por que ele me odeia, talvez o gênio perguntou em algum lugar do espaço mas, certamente, entendendo as reações humanas, no que era craque). Ora, peguei tudo e adentrei no "Circular" e desci na rodoviária. Estava de bem com meus astros pois, apareceu o velho amigo Aírton do Choró e me deu aquela carona. O meu colega catador(também sou) Daniel do Monte Alegre, um amigo especial, encontrou e me repassou um achado inusitado: um volumoso álbum contendo muitos santinhos de pessoas que partiram desta para a melhor(ou pior?). Este material é de grande utilidade para se contar um pouco da história de muitos quixadaenses que se chamam saudade. Numa certa manha, apareceu um senhor e, com muita raiva, jogou no lixo várias imagens de Nossa Senhora. Fiquei a pensar, que mal ela lhe teria feito. Dela, ouvi dos meus pais e muitos amigos, tratar-se de uma mãe amorosa, grande mulher da história. Os alfarrabistas(caras que vendem livros usados) sempre me procuram com o objetivo de comprar esses tesouros sempre recebendo um sonoro "não". Esses senhores falam que eu não levarei nada mas, argumento que muitos jovens utilizam meu material. Depois, quando falecer, finar-se, bater a biela, à caçoleta, as botas ou sei lá o quê, podem vender tudo. Agora, não senhor! Agradecendo a sua bondade e paciência por ter lido esta minha história, paro por aqui, lhes dizendo, amigos, que encontrei muitas coisas de valor nos lixões, mas nada comparável a dignidade presente, a riqueza da decência desta gente que busca no que é descartado pela riqueza e luxo,  condições para a sua sobrevivência. Lutam pela vida com honestidade e só lembrados em tempos de eleições sendo abraçados(abraço de verdadeiros Judas). Me envergonho, choro até, ao lembrar que, num passado já distante, os via como mendigos ou marginais. Mas, nunca é tarde para abrirmos mãos de nossos preconceitos. Hoje, me orgulho em dizer que também sou um deles! Eu também sou um rei do lixo! Não sei se mereço tanto, amigos!
-Imagens retiradas da Internet